Por Rogério Salgado *

“Memória de um tempo
onde lutar por seu direito
é um defeito que mata”

(Gonzaguinha)

Conheci Aroldo Pereira em 1985, num desses encontros inusitados nos jardins do Palácio das Artes. Começamos ali a trocar algumas ideias. Neste mesmo ano veio o 1º Encontro Popular de Cultura (EPC) e a gente se reencontrou, depois o Psiu Poético e o resto é história.

Influenciado pela Geração Marginal dos anos 1970 (quem não foi, que atire o primeiro verso), depois de 14 anos do seu “Parangolivro”, primeiro de uma trilogia inspirado no parangolé do multiartista Hélio Oiticica (1937-1980), Aroldo Pereira, poeta e agitador cultural nos chega com “Parangolares”, segundo livro desta mesma trilogia, no qual homenageia o artista plástico Raymundo Collares (1944-1986), além de relembrar as lutas dos deserdados da nossa sociedade, através de memórias e vivências. Se no primeiro era “Parangolivro”, neste veio “Parangolares”, numa alusão a Raymundo Collares, motor maior do andamento deste livro.

 

 

Nascido em 1959, o poeta tinha cinco anos de idade quando em 1º de abril de 1964 o país tomou um golpe de estado e aqui foi implantado uma ditadura militar, dessas que censuram, perseguem, torturam e matam seres humanos que lutam a favor da liberdade. E cresceu tendo consciência do que acontecia entre nós e posso ter (quase) certeza que a publicação deste livro em 2023, deve-se à quase volta dessa ditadura pelo governo passado e seus companheiros que de forma alguma, amam a liberdade alheia e pouco se importam com a fome e a miséria do nosso povo. Ainda bem que conseguimos reconquistar a democracia quase perdida, não importa quem esteja no poder garantindo isso. Aroldo não é um desses poetas egoístas que buscam medalhas e pouco importa o resto (temos muito disso nos tempos atuais), mas usa seus versos como arma para denunciar o que precisa ser denunciado, doa a quem doer.

Nos seus versos, observamos um entendimento sensível de que cada vez mais, a sociedade está sob o “comando” de pessoas que não entendem afeto e carinho, que limitam o acesso a direitos iguais, minando a beleza da vida e das construções coletivas. Aroldo Pereira revisita marginalidades, os negros, a religiosidade, as artes deixadas à margem neste conceito de mundo fascista da “branquitude”, como destaca.  

 

Montes Claros (MG)

 

Na sua poesia, sentimos uma doce agressividade poética, na qual expressa verdades absolutas, usando seus versos como bandeiras abertas em busca de paz e soluções, num mundo hipócrita, onde a sociedade vive de mentiras. O óbvio disso tudo é o que se vê nos dias atuais: pessoas conscientes apoiando quem busca acabar com a fome e a miséria deste país, enquanto ignorantes politicamente sociais aplaudem quem busca ditadura, tortura e ódio, em nome da família, da pátria e de Deus. Além do mais, tenho observado a posição política da maioria dos cristãos atuais. Na época em que Jesus Cristo, maior poeta que já visitou este planeta, homem que nos ensinou o amor ao próximo foi crucificado, foram os cristãos das sinagogas quem o denunciaram para ser morto na cruz e foram esses mesmos cristãos quem o entregaram para a ditadura romana da época, cobradora de altíssimos impostos. Hoje, vejo diversos evangélicos, católicos e até espíritas kardecistas apoiando um político que é a favor da ditadura, como também das bárbaras torturas. E esses mesmos cristãos pedem que amemos o próximo como a nós mesmos e que façamos a caridade sempre, em nome de Jesus. Total hipocrisia.

 

Hélio Oiticica

 

“Parangolares” traz versos simples, e qualquer leitor que tenha um pouco de sensibilidade entenderá suas palavras. Via isso nos versos de Bandeira e Drummond e nos de Quintana também. O livro abre com “Guerra Fria”, em que diz: “há uma guerra / contra a poesia / o estado detesta / a poesia / os poderosos sonham / em acabar com / a poesia/viva a poesia viva”.

Sem hipocrisia, fala verdades que poucos poetas teriam coragem de dizer, quando verseja: “se o mundo / não fosse comandado / por babacas / talvez eu fosse poeta / 01 sonhador anarquista / 01 delirante cantor / propondo revoluções / mas os rumos / q o mundo toma / não nos permitem / delírios, amores, invenções, / no muito, alguns escorregões / assim sigo de plantão / batendo ponto & carimbo / como 01 barnabé cagão”.

Apesar de tudo, o poeta também sabe ser lírico, sem perder a modernidade, num poema curto e de rara beleza: “a gente demora / mas também chora”.

E numa verdade que dói, diz o que no fundo não quereríamos saber: “você / sendo doce / como a lima / há de perceber / q a poesia / amarga / como a vida”.

E encerra com um antagonismo genial: “a ternura q eu sinto / continua violenta”.

 

Raymundo Collares

 

“Parangolares” é um livro doce e agressivo na medida certa, vanguarda com uma dose de tradicionalismo poético, sem perder a essência natural de ser cult, sem deixar de ser popular, de ser humano. Aroldo Pereira fala para quem vive à margem e precisa de alguém a seu lado, mas também para quem vive no esquema natural dos opressores, porque esses precisam também receber seus versos como quem recebe um soco no estômago. Aroldo Pereira inspirou-me a escrever os poemas “Verbalizando I” e “Verbalizando II”, pela minha identificação de ser sincero nos meus versos, doa a quem doer, poemas estes publicados no meu livro “SaiS” (Belô Poético, 2012), assim como sua realização do Salão Nacional de Poesia — Psiu Poético inspirou-me a realizar com Virgilene Araújo entre 2005 e 2014, o Belô Poético — Encontro Nacional de Poesia de Belo Horizonte.

“Parangolares” traz o selo editorial da Editora Patuá, tendo como editor Eduardo Lacerda, assistentes editoriais Amanda Vital, Diego Alves, João Vitor Nascimento, Maria Beatriz de Paula Machado, Mylena Morais e Ricardo Escudeiro; capa e projeto gráfico de Bruno Santos, administrativo e comercial Priscila Gunutzmann, expedição Sheila Gomes, apresentações de Anelito de Oliveira e Jairo Fará. Contato: aroldopereirapoeta@yahoo.com.br.

Quem foi Raymundo Collares

Raymundo Collares foi um artista único na cena experimental da arte brasileira do final dos anos 1960. O rigor formal da tradição construtiva aliou-se nele ao ruído urbano e expressivo da nova figuração e à urgência comunicativa da arte pop. No catálogo da exposição “Nova objetividade brasileira” (1967), que foi a estreia de Colares na cena artística, Hélio Oiticica redige uma espécie de manifesto pós-neoconcreto, levando em consideração os desdobramentos experimentais da arte brasileira recente dentro de um momento político específico: o golpe militar e a intensificação da resistência política e contracultural.  Entre 1966 e 1970, ano em que ganhou o prêmio de viagem ao exterior do Salão Nacional de Arte Moderna, sua obra teve um desenvolvimento merecedor de seu talento nato. Do movimento virtual das pinturas dos ônibus, passando pelas trajetórias em metal e chegando às páginas de cor multidirecionais dos Gibis, o que se percebe na poética de Collares é uma coerência plástica notável. Entre 1971 e 1973, viveu em Nova York, Milão e Trento. De volta ao Brasil, passando por dificuldades financeiras e psicológicas, afastou-se do circuito de arte. Apenas no começo da década de 1980 iria retomar a carreira. O lance trágico viria em seguida. Depois de uma longa relação poético-visual com os ônibus, acabou atropelado por um deles. Recuperando-se em Montes Claros, morreu em 1986 queimado na cama do hospital em um incidente até hoje sem explicação. A obra de Collares tem um lugar especial na história da arte brasileira. Aroldo Pereira teve a grata satisfação de ser seu amigo.

 

Sem Título / Raymundo Collares, 1969

 

Quem foi Hélio Oiticica

Hélio Oiticica foi um artista plástico. Pintor, escultor e destacado artista performático, um dos grandes nomes da Arte Concreta no Brasil. Nasceu no Rio de Janeiro, no dia 26 de julho de 1937. Entre 1955 e 1956, integrou o Grupo Frente, grupo concretista que contava com a adesão de artistas importantes como Ivan Serpa, Lígia Clark e Lygia Pape, todos ligados ao concretismo. Um dos primeiros trabalhos realizados por Oiticica foi a série “Metaesquemas” (1956-58) quando elaborou mais de 400 pinturas, em pequeno formato, realizadas em guache sobre cartão; ali o artista fez experimentações com cores, formas abstratas geométricas e com o espaço. A partir de 1959 iniciou seu processo de transição da tela para o espaço ambiental. Um dos primeiros trabalhos que marcaram essa mudança foi a instalação “Bilaterais” (1959) onde apresentou objetos coloridos que traziam forma e cor para o espaço, todos suspensos por fios invisíveis. Outra obra desse período é “Grande Núcleo” (1960), na qual o espectador tem a experiência de caminhar entre as placas amarelas presas no teto por fios. No fim da década de 1960 Hélio foi levado pelos colegas Amilcar de Castro e Jackson Ribeiro para colaborar com a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira. Envolveu-se com a comunidade do Morro da Mangueira e dessa experiência nasceram as “Manifestações Ambientais”, quando apresentava os “Parangolés” (1964), que consistiam em tendas, estandartes, bandeiras e capas de vestir feitas de tecidos, que revelam cores e texturas a partir do movimento corporal de quem as vestem.

A mostra “Tropicália” (1967), montada na exposição “Nova Objetividade Brasileira”, realizada no MAM / RJ, deu nome a importante movimento da música brasileira liderado pelos cantores Caetano Veloso e Gilberto Gil, entre outros. A instalação foi composta por dois penetráveis com plantas, areia, poemas-objetos, capas de parangolés, e um aparelho de TV — formando um labirinto sem teto que remetia à característica de uma favela. Outra obra de Hélio Oiticica concebida para que o público tivesse uma experiência imaginativa se locomovendo dentro de seu espaço é “Magic Square” (1977), que foi instalada no Instituto Inhotim, em Minas Gerais. Em 1968 foi a vez da manifestação coletiva “Apocalipopótese”, que reuniu no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, seus Parangolés e os “Ovos” de Lygia Pape. Em 1969, suas experiências revolucionárias foram reunidas em uma exposição realizada na Whitechapel Gallery, em Londres, denominada “Whitechapel Experience”. Hélio Oiticica faleceu no Rio de Janeiro, no dia 22 de março de 1980.

 

Grande Núcleo / Hélio Oiticica, 1966

 

Quem é Aroldo Pereira

Nascido em Coração de Jesus (MG), em 6 de outubro de 1959, mudou-se com sua mãe (influência humana na sua vida) Juscelina Pereira Neta (1930-2022) para Montes Claros em 1963. Em 1990 o nome do poeta ganhou verbete na Enciclopédia de Literatura Brasileira e é considerado um dos representantes da literatura afrodescendente no Brasil.É um dos fundadores do grupo de literatura e teatro Transa Poética, surgido em 1979, e coordena o Festival de Arte Contemporânea Psiu Poético,criado em 1987. O Psiu ocorre anualmente em Montes Claros, sempre do dia quatro (dia municipal da poesia) a 12 de outubro, com sede no Centro Cultural Hermes de Paula. Desde 2018, também ocorre em Belo Horizonte (MG), no mês de março, o Beagá Psiu Poético. Em 2007, Aroldo ajudou a fundar e se tornou sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros.  Também em 2007, recebeu a medalha do Sesquicentenário de Montes Claros, onde também é cidadão honorário. Em 2010, sua obra “Parangolivro” foi selecionada para o vestibular da Universidade Estadual de Montes Claros, pela qual, em 2017, recebeu o título de Doutor Honoris Causa.  Aroldo é pai de seis filhos, Amora, Amanda, Renata, Samuel, Lucas e Maluh. Fez parte da Geração Mimeógrafo, teve suas primeiras publicações nos anos 1980 através da chamada Poesia Marginal. Seu primeiro livro mimeografado, “Canto de Encantar Serpente”, foi lançado através de um recital em 1981, e foi barrado pela diretoria do Centro Cultural por considerar a obra um atentado à moral e aos bons costumes da família. Seguiu-se a este a publicação alternativa de “Azul Geral” em 1981, que não foi liberado para vendas na Feira de Artes de Montes Claros. Nos anos seguintes foram lançados “Haikai quem quer” em 1984 e “Amor inventado: doces pérolas púrpuras” em 1986. Na década de 1990, publicou seu primeiro livro em formato convencional, “Cinema Bumerangue” em 1997. Dez anos depois, em 2007 lançou “Parangolivro”.

 

 

Verbalizando I

Para Aroldo Pereira

“Meus lábios são doces

e minhas palavras amargas” *

a palavra afiada

navalha

minha

corta quando abro

o verbo

salga

feito sais

sobre a pele

o que sai da minha boca

se necessário

machuca

feito um soco

* frase de abertura do primeiro livro de poemas do autor, intitulado “Meu Íntimo” (Editora Arte Quintal, 1984)

 

Verbalizando II

poetizando

apenas busco

acertar na cara

da hipocrisia

a qual faço o impossível

para que passe

longe da minha janela.

 

* Rogério Salgado é poeta com 49 anos de carreira literária e acaba de publicar “Antes que a lua enfarte” (Orgânica Editorial).

 

José Edward V. Lima, Aroldo Pereira e Rogério Salgado