Por Rogério Salgado *

“a arma da mulher / é a língua / por isso te toco ferina” (Nilza Menezes)

Existem mulheres que ultrapassaram seu tempo e sua época. Que com sua arte fizeram a diferença. Podemos citar, por exemplo, Simone de Beauvoir (1908-1986). Sendo adepta da teoria existencialista, onde a liberdade é a principal característica, chamou a atenção dos conservadores. Em sua obra “O Segundo Sexo” Simone aborda o papel da mulher na sociedade e a opressão feminina num mundo dominado pelo homem. É dela a frase: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. Simone Lucie-Ernestine-Marie Bertrand de Beauvoir, mais conhecida como Simone de Beauvoir, foi uma escritora, intelectual, filósofa existencialista, ativista política, feminista e teórica social francesa. Beauvoir expôs o fato de que as ideias dominantes no campo intelectual eram, então, falhas e não levavam ao ponto de crítica radical as implicações políticas, sociais e existenciais de um fato que ela prova no livro: “As relações entre os sexos se constituem por desigualdades”. Teve um relacionamento aberto com o filósofo e escritor Jean-Paul Sartre (1905-1980) que durou cerca de 51 anos, até sua morte.

 

Simone de Beauvoir

 

Outra que voou à frente do seu tempo com suas ideias foi a poeta portuguesa Florbela Espanca (1894-1930). Batizada como Flor Bela Lobo, passou a se autonomear Florbela d’Alma da Conceição Espanca. O pioneirismo e a independência feminina de Florbela também estiveram presentes em sua vida pessoal. Florbela casou-se três vezes, com Mário Lage (de 1925 a 1930), António Guimarães (de 1921 a 1925) e Alberto de Jesus Silva Moutinho (de 1913 a 1921). Tinha uma verdadeira paixão pelo seu irmão Apeles Espanca, a ponto de imaginarem algo como incesto, mas que não fazia parte de seus sentimentos. Florbela abordou o erotismo em parte de seus sonetos. Um dos sonetos mais conhecidos de sua lavra é “Fanatismo”, por ter sido musicado por Raimundo Fagner, no qual diz amar alguém com todas as forças, sobre ficar vidrada, fanática por um amor a ponto de fazê-lo a sua razão de viver.

 

Florbela Espanca

 

No Brasil tivemos Chiquinha Gonzaga. Francisca Edwiges Neves Gonzaga (1847-1935), mais conhecida como Chiquinha Gonzaga, foi uma pianista, compositora e regente brasileira. Tornou-se a primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil combinando o popular com o erudito e ficou famosa por compor a primeira marchinha de carnaval: “Ó Abre Alas”. Como autora de músicas de sucesso, sobretudo pela divulgação nos palcos populares do teatro musicado, Chiquinha Gonzaga sofreu exploração abusiva de seu trabalho, por ser mulher, o que fez com que tomasse a iniciativa de fundar, em 1917, a primeira sociedade protetora e arrecadadora de direitos autorais do país, a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais / SBAT, um caminho aberto para a futura ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição).

 

Chiquinha Gonzaga

 

Vejo em Nilza Menezes, poeta, também uma artista que a seu modo, transgride pensamentos e ideias vinculadas ao conservadorismo que atravessa nossos tempos. Por isso, gosto da poesia de Nilza Menezes. Poesia que fala do dia a dia com a naturalidade de quem conversa conosco na sala de estar. Nilza, a seu modo, também fez a diferença com seus versos, nestes séculos 20 e 21.

 

 

Conheci Nilza Menezes através de uma publicação no jornal Alto Madeira, na página Lítero Cultural do jornalista e escritor Selmo Vasconcellos, de Porto Velho (RO). E foi paixão à primeira vista. Entrei em contato com ela no velho estilo de correspondências via correios e ficamos nos correspondendo daí em diante. Em 1997 lhe enviei meu livro artesanal “Depois de uma dose de gim”, livro esse considerado por críticos como minha obra prima, mas que por motivos pessoais hoje renego-o em minha bibliografia. Daí convidei-a para o meu projeto de colocar poemas dentro de saquinhos de embrulhar pães em padarias, projeto este que recebeu o Prêmio Capital Nacional, Categoria Poesia em 1998, em Aracajú (SE) e assim, neste ano ela se fez presente no “Re-In/Sacando a Poesia Saco IV”. O resto é história.

 

Projeto Re-In/Sacando a Poesia

 

Recebi ao longo do tempo, seus livros “Poções & Magia” de 1995; também vieram “Princesas Desencantadas ou A história das mulheres que ousaram sonhar” em 1996, “50 Mulheres” de 1996, “A louca que caiu da lua”, livro este que serviu de samba-enredo para a Escola “Diplomatas do Samba” ganhar o Carnaval de Rondônia de 1997, “Fruta azeda com sal” de 1997, “Sina: troco ou vendo em bom estado” de 1999 e “Feitura” de 2003, estes os que eu tenho na minha estante. Daí que nos perdemos no caminho. Ela foi de Rondônia pra São Paulo e eu fiz um monte de coisas novas e para minha alegria, nos reencontramos neste ano de 2024. Recebo agora seu último rebento de 2016, intitulado “A arma da mulher é a língua — Poemas feministas” (Fonte Editorial), livro este tão atual como se tivesse sido publicado ontem.

Se a poesia de nossa Adélia Prado fala do cotidiano, a poesia de Nilza Menezes também fala. Apesar de reconhecer os valores de ambas, por questões de gosto e afinidades, prefiro os versos de Nilza Menezes, pois identifico-me profundamente com eles. É que na minha história, consta que aos cinco anos, meu pai adoeceu e me enviaram para o Asilo da Lapa. Lá, minha tia-avó, ou seja, tia do meu pai era Madre Superiora e eu fiquei por ali, entre idas e vindas para a minha casa, até os 11 anos. Criado “Bendito é o fruto” entre 50 meninas, aprendi o lado sensível das mulheres e hoje entendo o porquê de ter aflorado meu lado feminino, que todo homem tem, mas que por um ridículo machismo, temem assumir. Daí a razão dessa minha compreensão da alma feminina dessa autora.

 

 

Em “A arma da mulher é a língua” há um duplo sentido, que talvez a poeta não tenha tido essa intenção ao cometer seus versos, mas há. Se por um lado, machistas se enveredam pelo modo malicioso, vejo-o como uma definição de que a arma da mulher é a palavra, justamente o que lemos aqui: poesia que viaja no tempo da bisavó, da avó e do avô, da mãe e do pai, em busca de compreender o porquê de determinadas atitudes de outras épocas passadas e que os tempos mudaram, não para melhores, mas para o que deveria ser realmente: um respeito pela igualdade humana.

Neste livro, Nilza Menezes mostra-se fêmea, sem ser piegas, mas acima de tudo mulher humana, pois não a vejo como uma feminista, mas sim expondo-se como a mulher que se deve ser: ela mesma. Vejamos: “minha avó lavava a louça do jantar, / meu avô olhava estrelas. / meu pai olhava estrelas / minha mãe costurava à luz de lamparina. / e eu quero é olhar estrelas”. Mas nessa busca de identificação, sua poesia demonstra a procura de ter essa personalidade amadurecida, nesses novos tempos: “vovó lavava os pés de vovô / obediente. / minha mãe já se rebelava / racionando sexo e carinho. / entre essas duas mulheres / tento encontrar caminhos”.

 

 

Porém, sua poesia sabe ser liricamente irônica ao refletir atitudes. No mergulho do passado, seus versos buscam entender o acontecido, para caminhar no presente, na busca do futuro. Leiamos: “quando meu avô morreu / intempestivo suicídio / suas roupas foram partilhadas / com os filhos. / meu pai guardou sua lembrança / num baú cheio de bolinhas / de naftalina / para conservar a morte”. A compreensão de sua condição humana vivencia na sua poesia um legado para reflexões do que devemos aprender com o nosso cotidiano, tirando lições da própria vida, essa a qual vivemos. “esse jeito mulher feito ao longo dos séculos / tão ensinado por minhas avós / hoje acordou e lavou os banheiros. / depois caminhou muito / pra castigar o corpo / que não comporta o que pensa e sente. / pensou em viagens, leu o jornal, falou ao telefone / comeu chocolate, perambulou pelas ruas, pelas lojas / se comprando presentes / tentando agradar / essa outra pessoa que vive / brigando pra não lavar banheiros.”

Nilza Menezes é poeta, pesquisadora e historiadora paranaense. Graduada em História pela Universidade Federal de Rondônia, Doutora e Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. É pesquisadora do Grupo de Estudos de Gênero e Religião Mandrágora / NETMAL e desenvolve pesquisas na área de gênero e religião, com ênfase nas religiões de matriz africana. Organizou e coordena o Centro de Documentação Histórica do Tribunal de Justiça de Rondônia. “A arma da mulher é a língua” teve uma adaptação para o teatro em 2018 pelo grupo “O Imaginário” no Espaço Tapiri, em Porto Velho, com dramaturgia e encenação de Chicão Santos. O grupo “O Imaginário” foi fundado com o objetivo de pesquisar e investigar as diversas linguagens artísticas

 

“A arma da mulher é a língua” teve adaptação teatral

 

“A arma da mulher é a língua — Poemas feministas” é um livro que se mede pelo prazer de se ler. Aqui, nessas páginas, a autora se desnuda verdadeiramente ao leitor, como quando nos diz: “carrego uma tragédia / que é a de me ver / na história das mulheres / desse tempo que exige transformações / mas que o velho insiste em ficar / mudo de roupas e sapatos / pra sair do círculo cansado / e desgastado / mas percebo que ele é recriado / com novos discursos / onde a minha história pessoal se crava / crivada do que não me permito abandonar”. E encerra com um breve aviso: “segundo as cartas / há um futuro / brilhante e turbulento. / segundo o calendário / esse tempo é breve”.

 * Rogério Salgado é poeta, com 49 anos de carreira literária. Autor de “Antes que a lua enfarte” entre outras obras antológicas.

 

Rogério Salgado lê Nilza Menezes