Por Eliana Saraiva * e Eduardo Waack

O lendário Festival de Águas Claras, realizado no município paulista de Iacanga, foi um marco no movimento cultural e anarquista brasileiro. Suas quatro edições (1975, 1981, 1983 e 1984) estavam repletas de experiências libertárias, artísticas e comportamentais. Sonoras! Se aos poucos o Sistema apropriou-se de seus ideais, também é verdade que o grito que explodiu da garganta de milhares de jovens ecoa ainda hoje. A base desta matéria foi uma entrevista que concedemos à jornalista Eliana Cristina Saraiva — uma das maiores expressões da imprensa regional — para a tradicional Revista da Comarca / Especial de Natal, edição nº 23. Achamos oportuno publicá-la aqui, pois ela serve de testemunho e lembrança daqueles dias loucos. Quem viveu, sabe o que é; quem não esteve lá, saberá agora. Boa leitura!

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Quantas edições do Festival de Águas Claras você participou e quais shows assistiu?

Eduardo — Participei da retomada do festival, em 1981. Eu tinha 17 anos. Praticamente assistimos a todos os shows que conseguimos. Chegamos um dia antes. Desde a abertura, com a trio country Dollar Company, até o encerramento, com Gilberto Gil, no domingo de noite. Com destaque para Zé Geraldo, Gonzagão, Raul Seixas, Egberto Gismonti, Moraes Moreira, Erasmo Carlos, A Cor do Som, Hermeto Paschoal, João Gilberto, Itamar Assumpção e Alceu Valença.

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Você foi com alguém daqui de Matão? Se sim, com quem? E como vocês se acomodavam?

Eduardo — Fomos em um grupo bastante eclético. Após voltar da escola (Prof. Henrique Morato), eu vi a matéria no jornal Folha de São Paulo, que meu pai assinava, e me interessei pelo tema. Uma oportunidade! Telefonei ao Fernandinho Scutti depois do almoço. Combinamos e aí surgiu a viagem. Agregamos Teddy Rein, Ronaldo Oliveira (da Planacon), Estevão Dias (o dono da barraca), Hugo Prata e o Carlão Xavier (Dente). Quando não dormíamos no gramado, junto ao palco, estávamos na barraca. Todos com lugares marcados. Um fato curioso é que o Estevão “exigia” que limpássemos a barraca todas as manhãs. Aos poucos nos insurgimos, e o deixamos sozinho, mas durante a madrugada fez frio, voltamos, dormimos e na manhã seguinte seguimos com a habitual faxina compulsória.

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Em sua opinião, porque o festival marcou tanto a época e chamou a atenção?

Eduardo — De certa forma o país já vivia os ares da abertura. Estávamos saindo de uma ditadura, onde as liberdades individuais foram por tantos anos suprimidas. Muita coisa nova estava a se gestar. E ainda havia certa proximidade com o final dos anos 1960 e início dos 70. Aqueles grupos e ideias que marcaram época estavam no auge. Como disse no início, foi uma oportunidade de vivenciar, em terras brasileiras, no interior paulista, tudo aquilo que líamos nas revistas de rock, assistíamos em programas musicais da televisão, como o Som Pop, e nos cinemas. Foi um momento de descobertas e afirmação.

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Podemos considerar o festival de Águas Claras como um evento da “contracultura? Por que?

Eduardo — O primeiro festival, em 1975, foi uma experiência ousada e totalmente marginal, no sentido de estar à margem do sistema. Com a retomada, no segundo festival, foi trazido à tona novamente os ideais libertários do movimento hippie, dos antigos beatniks de Jack Kerouac, Dean Moriarty (Neal Cassady) e Allen Ginsberg, da tropicália e da poesia marginal. “Seja marginal, seja herói”, já dizia Hélio Oiticica em 1968. Cronologicamente a distância que separava aquilo tudo, da insipiente década de 1980, era muito pequena. Lennon fora assassinado poucos meses antes. Canções do Vandré eram tocadas clandestinamente por aí. O atentado terrorista do Rio Centro acontecera em abril daquele ano. Estados Unidos e União Soviética viviam o auge da Guerra Fria… Havia uma ebulição social e cultural que estava prestes a explodir, a água ferver, o caldo entornar. Queríamos mais, tínhamos esse direito, e saímos às ruas para exigir, literalmente, em 1983, na campanha das Diretas Já. Infelizmente o sistema se apossou destes e de outros símbolos da contracultura e da liberdade de expressão, ganhou muito dinheiro com isso, e o que se vê atualmente é uma diluição insossa e insípida. Sem sentido, sem propostas, sem coragem.

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Qual o significado deste festival para você? (abre o coração e conta…)

Eduardo — Esse festival permanecerá para sempre em meu coração e em minha memória pois foi a confirmação de tudo aquilo que eu já sentia, experimentava e percebia, das leituras que fazia, das canções que escutava, dos filmes que assistia. Das posições políticas que já tomava. The Who, Beatles e Los Jaivas conviviam em minha mente com Geraldo Vandré, Chico Buarque, Os Mutantes. Helder Câmara, Chacal, Thiago de Mello e Darcy Ribeiro eram semelhantes a Garcia Lorca, Ferlinghetti, Neruda, Maiakovski e Eduardo Galeano. Fellini, Pasolini, Buñuel, Glauber Rocha, Rogério Sganzerla e Luiz Rosemberg Filho (que por muitos anos escreveu para O Boêmio) dançavam ciranda comigo, ao adormecer. São Paulo = Califórnia. Matão = Calcutá. No II Festival de Águas Claras, em Iacanga, muito aprendi por observar, comparar e ouvir.

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O que mais marcou? Quais músicas são eternas para você até hoje?

Eduardo — Tudo marcou-me profundamente de modo completo e absoluto. Desde convencer nossos pais a nos deixarem viajar (sim, éramos obedientes), guardar o dinheiro para o ingresso, até a viagem de ida. Primeiro de ônibus, até Ibitinga, e depois de carona, até Iacanga. Nosso grupo se separava e depois unia, na estrada. Hugo Prata se ajoelhava na estrada, implorando carona, e os carros paravam, parecia que o Brasil inteiro seguia a Iacanga, à Fazenda Santa Virgínia. Nossa última carona foi num caminhão que transportava bois, que parou acolhedor. Não hesitamos. Corremos e entramos, e sobre o esterco e alguns animais, uma pequena multidão de malucos aglomerados. Felizes. Silenciosamente felizes. Fomos a Iacanga para vivenciar a liberdade que se espraiava como uma bandeira. Éramos crianças inocentes e caipiras adentrando em Woodstock. Disfarçávamos bastante, fingindo ser tudo aquilo que víamos e imitávamos. Foi um aprendizado. Queríamos parecer sérios, mas entre nós era só bagunça. Nossa barraca ficou conhecida como a “barraca do peido”, adivinha porquê! Uma bagunça só. Mas uma aventura solidária e companheira. No segundo dia encontramos o Bilo Baldan, Dudi Scutti, Pitão Lombardi e o Pedro Borracha. Pedrão dormiu em cima de uma árvore, pois estava sem barraca, e no outro dia pela manhã não conseguia descer… O Bilo ficou com dor de barriga e não teve dúvidas, foi até a barraca dos meninos, na lona traseira, e cagou displicente. Saiu dando risada, anunciando o feito aos quatro ventos. Quem iria impedi-lo? Num dos shows, quando o Gonzaguinha agradeceu a força que a plateia dera ao seu pai Gonzagão, que se apresentara antes, o Ronaldinho não teve dúvidas e disparou: “Não tem nada não, um dia você chega lá!”. Milhares de pessoas aplaudiram esta frase lapidar… Alegria contagiante, banhos de rio, noite estrelada, vento de setembro anunciando a primavera.

No entardecer daquele primeiro dia encontramos algumas pessoas sentadas na grama apreciando o pôr do sol. Sentamos ao redor. Um jovem cabeludo cantava e tocava ao violão uma linda canção cujos versos não me esqueço: “um cigarro por mim enrolado / quem está baseado está sempre feliz”. Era o mistério ali ao nosso lado. Após o banho de mina, no segundo dia, fizemos um círculo para o Ronaldo se trocar. Assim que ele tirou o calção nós puxamos sua toalha e abrimos a roda… Ele saiu pelado caminhando e cantando, sorrindo, como se nada acontecesse… Permaneceu um bom tempo assim. Eu e Fernandinho íamos pela manhã atrás da barraca que vendia abacaxis, raspar o lado interno das cascas que eram jogadas num tambor, para comer; aquela fruta tinha um sabor especial… Aquele pão francês amanhecido, recheado com molho de carne moída, que comíamos no almoço, valia pelo tempo de espera na fila para comprá-lo.

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Suas considerações sobre o tema proposto (o legado deste evento para você).

Eduardo — Creio que o legado permanecerá em meu ser como uma tatuagem, parafraseando a música de Chico Buarque e Ruy Guerra. Éramos jovens e belos. Buscávamos um mundo melhor. Vivendo com nossas famílias, pais e mães, ainda tínhamos avós, cuja residência frequentávamos. Estávamos prestes a adentrar o mercado de trabalho e a enfrentar o sistema. Jurávamos resistir. Nos entregamos. Hoje, já órfãos e com poucas esperanças de um planeta melhor, lutamos para pagar nossas contas e honrar compromissos. Deste contraste, resta o ser que sobrevive e segue abrindo os seus caminhos com relativa independência. Na tarde daquele domingo, quando o organizador, do alto do palco, pediu sugestões para o próximo festival, um de nós gritou, de imediato: “Monta uma banca para vender maconha…”. Comoção generalizada ante a inusitada frase! O que era maconha, que tanto nos atraia e da qual tínhamos tanto medo de experimentar? Antológica também ficou a frase que disse a uma galera de Lins, que recém conhecemos, quando os convidei a passar uns dias em Matão: “Vem pra Matão que em casa vocês terão som, sol, moradia e fumo”… Virou bordão, que repetimos até hoje, quando nos encontramos. Som, sol, moradia e fumo! Um bom começo…

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 * Residente em Matão (SP), Eliana Saraiva é artista plástica, professora e jornalista. Diretora do Portal de Notícias “Matão Informa” e Mestra em desenvolvimento regional e meio ambiente.

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Diversos grupos e pessoas que se apresentaram no Festival não constaram do cartaz, como Zé Geraldo e Raul Seixas

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