Por Rúbia Lóssio *

Ao Professor Antônio Gondim Lóssio (25/08/1932-31/10/2023)

Certo dia, perguntei ao meu neto o que era o tempo para ele, e rapidamente ele respondeu: “O tempo é como o gelo, existe, mas, derrete”. Lembrei-me de Jean Piaget, que diz, “quando você não souber decifrar algo, pergunte a uma criança”. Pois bem, o tempo é a maior riqueza que temos. É um baú, porque é o maior guardador de memórias, e é feito gelo, porque escapa. Quando era pequena não entendia de sonhos, acho que ainda não entendo, mas o meu pai me ensinou e mostrou o tempo para mim. Meu pai era fascinado por relógios antigos e modernos. Cada relógio com sua história, ou seja, com seu próprio tempo. Na sala havia um relógio que a cada hora batia de acordo com sua quantidade, imagine as batidas ao meio-dia e à meia-noite! Acredito que relógios marquem a hora com uma mensagem. Eram relógios de vários modelos. Para tanto, existe relógio que fala com a gente. Conta o que se foi e avisa o que estar por vir.

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Antônio Gondim Lóssio e sua esposa Josete

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Quando pequena vi que meu pai, espirituoso, assumia sua personalidade do sistema patriarcado com propriedade. Inteligente e sagaz, fazia cálculos e contava piadas. Gostava de beber e se embriagar. Muito prepotente, conseguia atrair pessoas com sua conversa e com seus olhos verdes. Ah! Esses olhos verdes, um perigo! Conquistava qualquer mulher. Por falar nisso, deu muito trabalho a minha mãe. Era um nordestino, cearense da cidade de Jardim. Sua cidade para ele era como Paris, tudo que via dizia, “igualzinho no Jardim, Ceará”! Achava bonito isto nele, a cidade fazer parte de sua alma. Mas, voltando ao assunto aprendi com meu pai, um professor catedrático da Universidade Federal Rural de Pernambuco, a conhecer o universo público da academia. Ele fazia os filhos ajudarem a corrigir as provas de economia e estátistica de seus alunos. Eu, nunca fui fã de cálculos, levei muito carão por não saber dividir, nem multiplicar.

Na época ele usava um relógio no braço, que hoje é considerado brega ou retrô. Certo dia, num início da tarde, meu pai me pediu para pegar o relógio dele no quarto que ficava no primeiro andar da casa, no bairro da Várzea no Recife. Estava assistindo sessão da tarde, e não podia perder a cena do filme onde o casal iria dar um beijo. Pois bem, fui correndo, ligeiro que estabaquei na escada e ainda trouxe o relógio de cabeceira, que era para trazer o de pulso. Resultado, perdi a cena do filme, cai, e aprendi que mesmo se não der tempo, o tempo se encarrega de mostrar outro tempo.

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Ele também tinha uma coleção de canetas de todos os tipos e qualidades. Para quê? Eu não sei bem, mas aposto que era para calcular e registrar o tempo! Ele tinha um quarto onde de tudo tinha, liquidificador desmontado, fios, canetas, relógios, cola araldite exposta na parede, porcas, parafusos, chaves de fendas, um torno, tudo isso numa bagunça que só ele conhecia. Meu pai adorava consertar os eletrodomésticos, mas na verdade ele gostava de saber a engenharia do funcionamento, ou seja, o tempo de cada máquina. Era uma espécie de professor Pirajá do Castelo Ratimbum do Nordeste. Mesmo quando meu pai me colocava de castigo, para saber do tempo perdido não aproveitado para o bem, eu não conseguia ter raiva dele.

Na infância com meu pai, aprendi que existem duas festas no ano, o São João e o Natal. São elas que fazem os sonhos das crianças. Num determinado Natal, fiquei acordada debaixo do mosquiteiro, estava esperando Papai Noel colocar os presentes na cama. Sabia que o Papai Noel era o meu pai, nunca imaginei outra pessoa. Então, fiz que estava dormindo e fiquei observando ele colocando os presentes na cama de cada filho. Minha mãe escrevia o nome de cada filho nos presentes. Quando meu pai saiu do quarto, quis pegar o presente, mas ele colocou do outro lado do mosquiteiro e deixei para abrir pela manhã. Mais uma vez, ele mostrou para mim a hora de ter paciência e esperar para vivenciar as coisas no momento que devem ser. Na vida é assim, tudo que a gente deve fazer é aprender a compreender o tempo. Nem que seja entre relógios, canetas e cálculos.

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Nos anos setenta íamos para as festas de aniversário num Fiat 147, os cinco filhos. Pense numa confusão. Eu de vestido bordado feito pela minha mãe, meias de crochê, e no final da festa meu pai ficava conversando e bebendo e esquecia que estávamos no carro. A demora era tanta que não sentia vontade de trocar de roupa e a sacolinha de bombons acabava no carro. Então, descobri que existe tempo para chegar e sair. Quando cresci, e me formei estava num restaurante com toda turma reunida e resolvi ir até o orelhão e liguei para minha casa. Na hora coloquei a mão no telefone para que ninguém conhecesse a minha voz. Pedi para chamar o professor Lóssio, e só ouvi a gritaria, “quem é essa mulher”? Meu pai atendeu com elegância de sempre, e eu falei: “— Oi colega”! Ele deu aquela risada, pois agora estava formada e ele era o meu colega. Com isso, cai na graça do meu pai. E, com isto, aprendi o valor de anos de estudos.

Brincava com ele dizendo que tudo que aprendi foi “Filosofia de Bar”. Mesmo porque o Padre Gárcia e as filosofias de Branchu, pautaram nossa convivência. Quando ele não sabia o que responder, dizia que foi o padre Gárcia… E quando era difícil ele dizia que era por conta de Branchu. Meu pai gostava muito da fruta pequi. Ele mostrou que devemos aproveitar o tempo da melhor maneira possível. Ele não me ensinou a andar de bicicleta, nem esteve nas festinhas do colégio, mas me mostrou que devemos ter princípios éticos para calcular o tempo perdido. Agradeço ao meu pai, que foi com o seu comportamento que resolvi fazer sociologia. Na década dos anos 1970 assisti o seriado Malu Mulher e descobri o significado da relação de gênero e das desigualdades sociais. E, mais uma vez ele me ensinou a calcular qual seria o melhor tempo para estudar. Comecei então, a perceber os ciclos da vida e os silêncios que cada ser humano possui. Assim, meu pai dizia, “que os sentimentos não se traduzem, sentem-se!”

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Foi com meus pais que aprendi a conhecer o sentimento do nordestino. Meu pai gostava de animais, foi veterinário e por isso, convivi com muitos animais. Cada filho que nascia ele dava um cachorro a minha mãe. Já tirei meu pai do sério muitas vezes, teve uma mudança de uma casa para outra na década de 1980 onde resolvi sentar numa mala e parei para escrever a reação das pessoas, e então, peguei a minha caneta e o meu diário para começar a contar o que estava vendo. Meu pai olhou para mim e disse: “isso são horas para escrever”? E, respondi: “e existe hora para escrever”? Daí aprendi que com uma caneta você pode escrever o tempo. Como somos feitos de memórias, somos feitos de histórias. “As memórias funcionam assim: quanto mais longe estão, mais queimam. E quando você percebe, o mundo inteiro já está em chamas.” Diz Elvira Alfaiate. Em mim há uma chama de memórias do meu pai. Eu não coleciono relógios como ele, mas em mim há um baú do tempo da nossa convivialidade. E, hoje mais uma vez ele mostrou que perdido é todo tempo que em amor não se gasta. A fragilidade da vida para ele era medida em seus relógios. E, entre relógios, canetas e cálculos tenho meu pai em mim. Gratidão painho!

* Residente em Lagoa Seca (PB), Rúbia Lóssio é socióloga, folclorista, professora e curiosa incansável. Integra a Comissão Pernambucana de Folclore e Culturas Populares.

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